O que mais me fascina na teoria da evolução das espécies é o rigor com que explica as origens da estupidez humana.
Devo confessar-vos que não tenho carências alimentares, nem preciso de poupar o cérebro e, por isso, tento pautar as minhas opiniões políticas por critérios menos simiescos.
O PS
Um dos disparates mais populares entre os portugueses consiste em repetir que o PS é um partido de esquerda. Com a sua conhecida creatividade, o povo português glosa este mote de formas admiráveis. Há aqueles que dizem que “o PS é um partido de esquerda, que faz uma política de direita”, que é como se dissessem: “aquele tipo é sapateiro, porque ganha a vida a guiar um taxi”. Porém, o mais frequente é ouvirmos um tipo a afirmar, com um ar convicto:”sou um homem de esquerda, sempre votei PS”, que é uma frase que, quando a ouço, lembro-me de uma amiga brasileira que garante que “no Brasil não há problemas de racismo, porque os pretos conhecem bem o seu lugar”.
O significado político da palavra “esquerda” nasceu durante a Revolução Francesa, quando, nos Estados Gerais, aqueles que votavam contra o rei e a contra os privilégios da nobreza se colocavam na ala esquerda da assembleia. Para mim, essa definição basta. É de esquerda quem defende os interesses dos pobres quando se opõem aos privilégios dos ricos.
É certo que a direita portuguesa tenta convencer-nos que as suas políticas são do interesse de todo país, sem distinção de filhos e enteados, como se o país fosse uno. Mas este argumento é apenas uma versão recauchutada do lema salazarista “todo pela nação”.
O PS é um partido de direita porque construiu a sociedade mais desigual e injusta da Europa, aquela que tem um maior número de pobres e onde os ricos são mais ricos. E não vale argumentar que a culpa foi do PSD. Desde 23 de Julho de 1976, quando o primeiro Governo Constitucional tomou posse, o Partido Socialista liderou o executivo durante quase 15 anos, poucos meses menos que o PSD. Os dois partidos têm o mesmo nível de responsabilidade na definição da sociedade em que vivemos.
Ao fim de 35 anos de regime democrático, Portugal tem os piores indicadores em múltiplos aspectos.
O sistema de ensino público é vergonhoso. Forma estudantes que aos quinze anos mal sabem ler nem escrever, e licenciados que não conseguem interpretar um texto, nem exprimir-se, muito menos exercer uma profissão. A justiça não funciona ou, de outro modo, só funciona para os ricos.
A protecção social na velhice caracteriza-se por uma disparidade obscena, com poucos milhares de portugueses com reformas milionárias e mais de um milhão com reformas de miséria, que mal chegam para comer, muito menos para a farmácia. A desigualdade na distribuição da riqueza é a mais elevada da Europa e, medida pelo coeficiente de Gini[1], é quase o dobro da média da União Europeia. O salário mínimo, 450 €, é o mais baixo da zona euro, longe da vizinha Espanha (624 euros).
Poderia aprofundar qualquer destas questões, e demonstrar que, ao contrário do que se apregoa, não é possível distinguir os governos do PS e do PSD, em nenhum destes aspectos. É para não abusar da paciência do leitor, que aprofundarei apenas um assunto.
Portugal é o terceiro país da Europa com maior número de trabalhadores com vínculo precário, percurso inaugurado por Mário Soares, com a primeira legislação sobre os contratos a prazo. Actualmente, são 500 mil "falsos recibos verdes", 684,8 mil trabalhadores com contrato de trabalho com termo, ou seja, 21 por cento da população activa. Se acrescentarmos a este número os trabalhadores independentes, muitos dos quais estão nesta situação, não por vontade própria, mas porque não arranjam um posto de trabalho fixo, nem sequer a recibo verde, esta percentagem sobe para os 28 por cento.
Quem trabalha a recibo verde não tem subsídio de férias, nem 13.º mês. Não se pode queixar, mesmo nas condições mais iníquas, sob pena de ficar sem trabalho. E, sobretudo, não tem um futuro.
Poderia pensar-se que o principal responsável foi o PSD e a sua falta de sensibilidade social. Mas não. O trabalho precário em Portugal aumentou um terço nos últimos 15 anos. Durante este período o PS esteve mais de 10 anos no governo. Há poucos anos, o valor das contribuições obrigatórias para a Segurança Social foi substancialmente aumentado, com o argumento de que os trabalhadores independentes são, na sua maioria, médicos e advogados. Tenho amigos que ganham pouco mais de 500 euros por mês e estão agora obrigados a pagar 156 euros para a Segurança Social.
Privatizações
Após os tenebrosos dias do PREC, regressaram do seu exílio brasileiro as “cabeças da economia”, como lhes chamou Lucas Pires. Desde então, a direita portuguesa tem sido particularmente eficaz na reconstrução dos monopólios.
PS e PSD estão a transferir a generalidade do país para a “esfera do sector privado”. A curto prazo, as casas onde vivemos, as estradas, as ruas, as barragens, as praias, as áreas florestais mais produtivas, a electricidade, o comércio, o gás, todo o sistema de transportes, as escolas, o sistema de saúde e até a água que chove, serão, na prática, propriedade de um reduzido número de grupos económicos. O recente ataque do PS aos funcionários públicos enquadra-se neste estratégia e pretende, a breve prazo, transferir para o sector privado o papel administrativo do Estado.
Neste contexto, não haverá aparelho de Estado capaz de cumprir as suas funções de regulação nem de fiscalização, ao contrário do que o PS apregoa. Todos nós (ou quase todos) pagaremos por serviços e direitos que hoje são gratuitos ou de baixo custo. E continuaremos a pagar impostos, porque esse dinheiro faz falta para as “ajudas ao investimento”, que é a expressão com que a “esquerda moderna” nos tenta convencer que tem que oferecer o nosso dinheiro aos ricos.
Por vezes, as pessoas fazem associações tão disparatadas que nem o mais arguto psicanalista conseguiria explicar. Eu, por exemplo, sempre que vejo Manuel Alegre lembro-me de uma paramécia. Haverá comparação mais absurda ?
Manuel Alegre julga que tem uma divergência política, mas engana-se. O que ele tem, é uma deficiência no metabolismo do cálcio. Se, de facto, for sincero, não precisa de saber do futuro da política de educação, nem com quem José Sócrates se vai coligar, nem de declarações inflamadas sobre o Serviço Nacional de Saúde. Do que ele precisa, é de sopinhas de ossobuco, de leite Mimosa e de outros alimentos ricos em cálcio.
A esquerda portuguesa lembra-me a albufeira do Alqueva e aquela frase que, durante décadas, permaneceu inscrita no paredão inacabado da barragem: “construam-me porra !”. Não trago a solução no bolso. Não sei como se constrói a esquerda, mas sei como se destrói, porque, isso, vi durante muitos anos.
[2] Intervenção no Seminário Diplomático sobre Internacionalização da Economia Portuguesa, 8 de Janeiro de 1997, Lisboa.