sábado, 14 de março de 2009

O poeta, a paramécia e outras palavras principiadas por “p”

O que mais me fascina na teoria da evolução das espécies é o rigor com que explica as origens da estupidez humana.
Vejamos, por exemplo, um disparate quotidiano: repetir o que os outros dizem mesmo quando a realidade é objectiva, e, relembremos, uma experiência clássica, bem conhecida da Psicologia. A um voluntário é pedido que aponte o maior de entre um grupo de objectos. Quando está sozinho, ele responde correctamente, mas ao ser integrado num grupo de actores, que identificam erradamente um objecto menor, ele troca de opinião e repete a resposta errada.

É certo que o nosso voluntário não tem culpa. Ele foi vítima de um mecanismo profundamente enraizado na sua mente, certamente, de forte base genética. Para sobreviver, os símios que nos deram origem e os primeiros seres humanos tiveram que identificar rapidamente, por exemplo, quais as plantas comestíveis e as venenosas, quais os predadores e as presas. O ser humano evoluiu em grupos sociais e, nesse contexto, confiar que a maior parte do grupo tomava a decisão certa foi uma solução fácil, fiável, e tornou-se um mecanismo fundamental para a sobrevivência.

Acresce que o cérebro humano é um orgão esbanjador. Gasta 20 % de toda a energia que consumimos e, ao longo da evolução humana, em situações de escassez alimentar, foi muito útil dispor de mecanismos de decisão pouco dispendiosos do ponto de vista energético.

Devo confessar-vos que não tenho carências alimentares, nem preciso de poupar o cérebro e, por isso, tento pautar as minhas opiniões políticas por critérios menos simiescos.

O PS

Um dos disparates mais populares entre os portugueses consiste em repetir que o PS é um partido de esquerda. Com a sua conhecida creatividade, o povo português glosa este mote de formas admiráveis. Há aqueles que dizem que “o PS é um partido de esquerda, que faz uma política de direita”, que é como se dissessem: “aquele tipo é sapateiro, porque ganha a vida a guiar um taxi”. Porém, o mais frequente é ouvirmos um tipo a afirmar, com um ar convicto:”sou um homem de esquerda, sempre votei PS”, que é uma frase que, quando a ouço, lembro-me de uma amiga brasileira que garante que “no Brasil não há problemas de racismo, porque os pretos conhecem bem o seu lugar”.

O significado político da palavra “esquerda” nasceu durante a Revolução Francesa, quando, nos Estados Gerais, aqueles que votavam contra o rei e a contra os privilégios da nobreza se colocavam na ala esquerda da assembleia. Para mim, essa definição basta. É de esquerda quem defende os interesses dos pobres quando se opõem aos privilégios dos ricos.

É certo que a direita portuguesa tenta convencer-nos que as suas políticas são do interesse de todo país, sem distinção de filhos e enteados, como se o país fosse uno. Mas este argumento é apenas uma versão recauchutada do lema salazarista “todo pela nação”.

O PS é um partido de direita porque construiu a sociedade mais desigual e injusta da Europa, aquela que tem um maior número de pobres e onde os ricos são mais ricos. E não vale argumentar que a culpa foi do PSD. Desde 23 de Julho de 1976, quando o primeiro Governo Constitucional tomou posse, o Partido Socialista liderou o executivo durante quase 15 anos, poucos meses menos que o PSD. Os dois partidos têm o mesmo nível de responsabilidade na definição da sociedade em que vivemos.


Ao fim de 35 anos de regime democrático, Portugal tem os piores indicadores em múltiplos aspectos.

O sistema de ensino público é vergonhoso. Forma estudantes que aos quinze anos mal sabem ler nem escrever, e licenciados que não conseguem interpretar um texto, nem exprimir-se, muito menos exercer uma profissão. A justiça não funciona ou, de outro modo, só funciona para os ricos.

A protecção social na velhice caracteriza-se por uma disparidade obscena, com poucos milhares de portugueses com reformas milionárias e mais de um milhão com reformas de miséria, que mal chegam para comer, muito menos para a farmácia. A desigualdade na distribuição da riqueza é a mais elevada da Europa e, medida pelo coeficiente de Gini[1], é quase o dobro da média da União Europeia. O salário mínimo, 450 €, é o mais baixo da zona euro, longe da vizinha Espanha (624 euros).

Poderia aprofundar qualquer destas questões, e demonstrar que, ao contrário do que se apregoa, não é possível distinguir os governos do PS e do PSD, em nenhum destes aspectos. É para não abusar da paciência do leitor, que aprofundarei apenas um assunto.

Portugal é o terceiro país da Europa com maior número de trabalhadores com vínculo precário, percurso inaugurado por Mário Soares, com a primeira legislação sobre os contratos a prazo. Actualmente, são 500 mil "falsos recibos verdes", 684,8 mil trabalhadores com contrato de trabalho com termo, ou seja, 21 por cento da população activa. Se acrescentarmos a este número os trabalhadores independentes, muitos dos quais estão nesta situação, não por vontade própria, mas porque não arranjam um posto de trabalho fixo, nem sequer a recibo verde, esta percentagem sobe para os 28 por cento.

Quem trabalha a recibo verde não tem subsídio de férias, nem 13.º mês. Não se pode queixar, mesmo nas condições mais iníquas, sob pena de ficar sem trabalho. E, sobretudo, não tem um futuro.

Poderia pensar-se que o principal responsável foi o PSD e a sua falta de sensibilidade social. Mas não. O trabalho precário em Portugal aumentou um terço nos últimos 15 anos. Durante este período o PS esteve mais de 10 anos no governo. Há poucos anos, o valor das contribuições obrigatórias para a Segurança Social foi substancialmente aumentado, com o argumento de que os trabalhadores independentes são, na sua maioria, médicos e advogados. Tenho amigos que ganham pouco mais de 500 euros por mês e estão agora obrigados a pagar 156 euros para a Segurança Social.

Poderá retorquir-se que nas últimas três décadas o país melhorou muito. De facto, embora aquém da generalidade dos países europeus, hoje em dia, vive-se melhor do que há 33 anos. Eu próprio vivo melhor que o meu pai e ele viveu melhor do que o meu avô. Mas isto não prova que José Socrates, nem Cavaco Silva, nem Mário Soares, nem o Dr. Salazar fossem homens de esquerda. A explicação é bem mais simples. Acontece que as economias têm o vício simpático de crescer e as mesas dos ricos, por muito largas que sejam, têm o hábito de deixar cair algumas migalhas.

Privatizações

Após os tenebrosos dias do PREC, regressaram do seu exílio brasileiro as “cabeças da economia”, como lhes chamou Lucas Pires. Desde então, a direita portuguesa tem sido particularmente eficaz na reconstrução dos monopólios.

PS e PSD, sem distinção, iniciaram uma política de destruição do Estado e, consequentemente, de redução do controlo democrático da sociedade portuguesa. Numa primeira fase, procederam à reprivatização da generalidade das empresas públicas, com o argumento de que nenhuma empresa pública é economicamente viável, pelo simples facto de ser detida pelo Estado.
Numa segunda fase, prosseguiram com a privatização de sectores estratégicos da economia: a quase totalidade dos bancos, as unidades de produção e distribuição de energia, as redes de esgotos, de água e de transportes.
Mais recentemente, o PS revelou a intenção de privatizar a rede viária, ou, eufemisticamente, concessionar as estradas a empresas privadas, por um período de 75 anos. Verificam-se, actualmente, as primeiras tentativas de privativar as matas nacionais e prossegue a destruição do Sistema Nacional de Saúde e do Ensino Público.
Teixeira dos Santos, o actual ministro das finanças, definiu a intenção desta política com um rigor que nenhum homem de esquerda conseguiria: “O objectivo principal das reprivatizações é operar a transferência dos centros de decisão económica para a esfera do sector privado”[2].

PS e PSD estão a transferir a generalidade do país para a “esfera do sector privado”. A curto prazo, as casas onde vivemos, as estradas, as ruas, as barragens, as praias, as áreas florestais mais produtivas, a electricidade, o comércio, o gás, todo o sistema de transportes, as escolas, o sistema de saúde e até a água que chove, serão, na prática, propriedade de um reduzido número de grupos económicos. O recente ataque do PS aos funcionários públicos enquadra-se neste estratégia e pretende, a breve prazo, transferir para o sector privado o papel administrativo do Estado.

Neste contexto, não haverá aparelho de Estado capaz de cumprir as suas funções de regulação nem de fiscalização, ao contrário do que o PS apregoa. Todos nós (ou quase todos) pagaremos por serviços e direitos que hoje são gratuitos ou de baixo custo. E continuaremos a pagar impostos, porque esse dinheiro faz falta para as “ajudas ao investimento”, que é a expressão com que a “esquerda moderna” nos tenta convencer que tem que oferecer o nosso dinheiro aos ricos.

Não é exagero afirmar que o PS e o PSD estão a restaurar um sistema político com muitas semelhanças com o feudalismo, embora, desta vez, sem os seus limites espaciais, porque o desenvolvimento tecnológico libertou a oligarquia dessa limitação.


O Poeta

Por vezes, as pessoas fazem associações tão disparatadas que nem o mais arguto psicanalista conseguiria explicar. Eu, por exemplo, sempre que vejo Manuel Alegre lembro-me de uma paramécia. Haverá comparação mais absurda ?

A paramécia é um organismo unicelular, revestido de pêlos, que habita em águas estagnadas, pútridas, onde sobrevive à custa de organismos mais pequenos e de detritos. Não tem cérebro, nem sequer sistema nervoso, mas faz uma habilidade fantástica: é capaz de identificar um obstáculo e mudar a sua trajectória. Diz quem sabe, que um sistema muito simples ligado ao metabolismo do cálcio permite-lhe fazer esta graça.

Pelo contrário, como os leitores bem sabem, Manuel Alegre é um mamífero, tem um cérebro (embora, pessoalmente, nunca o tenha observado), e a sua maior habilidade não é mudar de rumo, mas escrever poemas. Para mais, garantem-me que não vive num pântano, nem se alimenta de detritos.

Manuel Alegre foi deputado e dirigente do partido socialista nos últimos 33 anos. Durante este tempo, apoiou todos os governos e aprovou todas as leis apresentadas pelo seu partido na Assembleia da República. Ainda recentemente, aprovou a lei que permite a privativação da água e, poucos meses depois, veio elogiar publicamente a “coragem política” da Sr.ª Ministra da Educação.

Em 2004, candidatou-se a secretário-geral e perdeu. Em 2005, candidatou-se à presidência da república, mas o seu partido negou-lhe o apoio. Ressentido, Manuel Alegre foi à procura da sua veia de esquerda. E encontrou-a. Em bom rigor, já não era bem uma veia, era uma variz, mas estava lá.

Desde então é o que se vê. De cada vez que vota favoravelmente uma lei do PS, faz uma declaração de voto. Veio afirmar-se contra a privatização da água, declarou-se contra o modelo de avaliação de professores e, imagine-se, até votou contra o pacote laboral.

Ao fim de trinta anos, parece querer mudar de trajectória. Mais vale tarde que nunca, mas, concordemos, até uma humilde paramécia, com os seus iões de cálcio, faria melhor figura.

Manuel Alegre julga que tem uma divergência política, mas engana-se. O que ele tem, é uma deficiência no metabolismo do cálcio. Se, de facto, for sincero, não precisa de saber do futuro da política de educação, nem com quem José Sócrates se vai coligar, nem de declarações inflamadas sobre o Serviço Nacional de Saúde. Do que ele precisa, é de sopinhas de ossobuco, de leite Mimosa e de outros alimentos ricos em cálcio.


Ou será que, como dizia o outro, o poeta é um fingidor ?


Previsão

A esquerda portuguesa lembra-me a albufeira do Alqueva e aquela frase que, durante décadas, permaneceu inscrita no paredão inacabado da barragem: “construam-me porra !”. Não trago a solução no bolso. Não sei como se constrói a esquerda, mas sei como se destrói, porque, isso, vi durante muitos anos.


Destrói-se credibilizando o embuste. Fingindo que o PS difere do PSD, que é uma alternativa, que tem uma sensibilidade social que nunca nínguém viu. O resultado já o vimos, é a inoperância da esquerda, e a manutenção da sociedade mais desigual da Europa.

Por isto, é inadmissível que gente de esquerda passe, a militantes do PS, um atestado público daquilo que não são. A sua intenção terá sido outra. Colando a sua imagem a Manual Alegre, pretendem assumir a postura de uma esquerda adulta e, desse modo, atrair o voto de protesto. Mas não creio que precisassem de fazê-lo. Mesmo antes desse triste episódio, já o Bloco de Esquerda estava a subir nas sondagens e, acredito, que se alguém oferecesse uma gravata a Francisco Lousã, e se Miguel Portas pusesse a fralda para dentro, conseguiriam o mesmo efeito.
Recentemente, um conhecido dirigente patronal afirmou, na RTP, que “a função do PS no sistema político portugues é evitar o crescimento dos partidos à sua esquerda”. Ao contrário do se tenta fazer crer, Manuel Alegre e aqueles que o acompanham apenas servem para manter a ilusão que existe uma esquerda no PS, e que o executivo de José Sócrates foi um desvio à “matriz do Partido Socialista”.

Em 2013, quando José Sócrates estiver completamente desacreditado, surgirá das catacumbas do Largo do Rato um jovem dirigente. Alegará que não apoiou Socrátes, aproveitará porta que Manuel Alegre conseguiu manter aberta, com a ajuda de alguma esquerda, e dirá pretende que o PS regresse às suas origens. Então, a esquerda, toda ela, voltará a ser consumida pela voragem do voto útil, e o PS terá cumprido, de novo, o seu papel.



[1] Razão entre o rendimento dos 20 % mais ricos e dos 20 % mais pobres
[2] Intervenção no Seminário Diplomático sobre Internacionalização da Economia Portuguesa, 8 de Janeiro de 1997, Lisboa.